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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sobre terrores e prazeres nos primeiros anos escolares

Sobre terrores e prazeres nos primeiros anos escolares Por Conceição Oliveira do Blog Maria Frô, twitter: @maria_fro Compartilho uma crônica de memórias, nascida de exercício acadêmico para dialogar com professores em formação. Memórias escolares da década de 1970 Sou a mais velha de cinco irmãos. Ao entrar na escola, em 1971, já tinha dois irmãos e o terceiro chegou quando eu estava na terceira série e o quinto na sexta série. Filha de mãe baiana de cultura rural que criou seus sobrinhos (já que era a caçula de uma família de dez irmãos), recebi dela o legado de me tornar ‘adulta’ muito cedo. Tinha muitas tarefas que nem sempre conseguia cumprir a contento. Lembro de apanhar logo pela manhã, porque ao sair para comprar açúcar não encontrei a marca usada pela mãe. Ela não era má, era jovem e com muitas responsabilidades. Com o pai sempre na estrada e ela tendo de lidar sozinha com tantos desafios, acabava por me forçar a crescer antes do tempo. Talvez porque vivenciei essa infância distante da traçada pelo modelo clássico do século XVIII e tivesse muitas outras preocupações na vida que me impediam de experimentar o afeto também presente nos muros intra-escolares não me lembro dos rostos ou nomes de minhas primeiras professoras. Mesmo assim, a escola para mim foi o lugar por excelência de encontro social, de fugir do trabalho árduo, das surras, dos gritos, dos arroubos violentos da mãe que pioraram muito ao longo dos anos e com a doença dela e os dois irmãos que vieram depois. Eu adorava ir à escola, chorava quando a mãe demorava a voltar e passava da hora de entrada. Terrores infantis: a primeira professora e a diretora general Apesar de não me lembrar dos rostos nem dos seus nomes, lembro das ações da maioria das minhas professoras. Minha primeira professora me parecia insuportável. Entrei na escola alfabetizada, aprendi com a TV que chegou na Copa de 1970. Ficava acompanhando os créditos e atazanando qualquer ser que sabia ler diante de mim, perguntando que letra era e que som fazia quando se juntavam. Ficava brava com a tevê que passava os créditos tão rapidamente. Minha primeira professora não percebeu que eu já sabia ler e escrever e me achava uma completa imbecil e assim me tratava. Dava-me desenhos com alguns comandos como: um coelho numa ponta, a toca em outra e no meio um labirinto e dizia “– Está chovendo, o coelho está com pressa, faça-o chegar rápido na toca”. Não titubeava: traçava uma linha reta entre coelho e toca. Terminava rapidamente as ‘lições’, fazia as de minha amiga de carteira e começávamos a conversar. A professora brigava. Uma vez, para me castigar, separou-me da amiga e me fez sentar com um menino. Isso foi mortal para mim. Sentava-me na pontinha pra ficar longe do menino, bumbum doendo, ela, visivelmente, divertia-se com a situação, as demais crianças também, o que tornava o castigo moral ainda mais humilhante. O garoto, sem jeito, procurava me consolar e piorava ainda mais meu sofrimento. Ela não percebeu ou não se comoveu com a minha tristeza profunda. Cheguei em casa e disse à mãe que não iria mais à escola. Chorei muito e ela, quase sempre sem paciência, parou para tentar entender e conversar. Ao mesmo tempo em que ir para escola livrava-me dos arroubos de violência de minha mãe, permitia-me o encontro com amigos e o exercício de um modelo de infância, que se as crianças pudessem escolher decidiriam por ele, topar com algumas figuras adultas, especialmente com a minha primeira professora e a diretora era quase como passar por revista na prisão. E muito embora eu não soubesse o que isso fosse, sabia o quanto era aterrorizante. Toda a escola no pátio, alunos enfileirados por tamanho, cantavam o hino, juravam bandeira e a diretora passava em revista. Era a hora de meu maior pavor: em princípios da década de 1970 a uniformidade era a meta: a altura das meias brancas; o comprimento das saias; a brancura das camisas e os cabelos e unhas limpas eram exigências. Ai do infeliz que a mãe não mantivesse o padrão, era exposto ali, no pátio escolar, feito um Tiradentes mirim. Ridicularizada, a vítima era apontada como o Sujismundo, uma personagem que não queríamos nem de perto ser comparados a ela. Para as classes pobres, de origem rural e nordestina que migraram para os pólos industriais da década de 1960, a apresentação impecável era um modo de se proteger dos inúmeros preconceitos. Minha mãe sempre foi caprichosa com a higiene das roupas. Até hoje, aos setenta anos, apesar da máquina de lavar, ainda assim, ela primeiro lava as roupas no tanque e só depois as coloca na máquina. Quando morávamos em casa com quintal, ela tinha quarador e o processo era ainda mais meticuloso. Minha mãe também tinha fixação por meias com pompom. E comprava as meias três quartos obrigatórias nos uniformes escolares com os maledetos pompons. Na hora da revista chegava a ficar com as pernas doendo de tanto que eu as pressionava uma contra a outra para não aparecer o volume dos pompons. O grande medo era me tornar alvo do castigo exemplar daquela diretora, fiel devota da ditadura militar, embora não soubesse o que significasse ditadura e achasse o presidente Garrastazu Médici parecido com o meu avô. Depois do hino e da revista no pátio, a diretora visitava sala por sala num incansável ritual. Carregava um cartaz que ao longo do tempo foi ficando surrado com imagens se opondo lado a lado em três fileiras. Em uma lembro-me de tanques de guerra e pomba da paz. E ela apontava para os tanques e perguntava-nos: “– Na Revolução de 1964 teve guerra?” Ao que em coro respondíamos: Não! Apontava para outro jogo de imagens cujos significados eram antagônicos e respondíamos com o mesmo vigoroso ‘Não’, até chegar ao último quadro com duas mãos, uma de pele clara e outra escura e tínhamos de dizer: “A Revolução de 1964 trouxe paz, amor e felicidade”. A professora que adorava me aplicar castigos morais um dia propôs-nos que fizesse um desenho para um concurso. Fiquei observando as formigas no quintal e fiz um desenho a lápis. No dia seguinte mostrei para ela e foi a primeira vez que elogiou algo produzido por mim e não me tratou como idiota. Escolheu o meu e o desenho do menino que ela me obrigava a sentar ao lado para enviar para o tal concurso e nos mandou ‘passar a limpo’. Voltei ao quintal e me pus a observar as formigas longamente, fiz outro desenho e no verso do sulfite escrevi: Fila de formigas Levam folhas Alimento da família. Havia caprichado ainda mais no novo desenho, coloquei na pasta e fui radiante para a escola mostrar à professora. Meu colega de carteira entregou o seu primeiro. Ela começou a gritar ensandecida. Chamou-o de ‘Sujismundo’, menino sem capricho, relaxado. Olhei para a minha pasta de couro e vi que a folha do desenho tinha feito uma pequena orelha. Ela pediu que eu entregasse o meu. Fiquei gelada, muda, lívida e quase sussurrei: — Esqueci, desculpe-me, senhora professora. Ela me olhou com aquela expressão de que eu não tinha solução, era definitivamente um caso perdido. Um dia ela não apareceu na escola. Fomos informados de que seu pai havia morrido e ela não retornaria. Comemorei a notícia como se fosse presente de natal só pra mim. Naqueles duros anos de chumbo, sem indústria chinesa, economia globalizada e era Lula, ganhar presente de natal só se fosse algo coletivo, um jogo, por exemplo, para brincar com os outros dois irmãos. Acho que minha primeira professora abandonou a escola sem saber que eu fazia poesia. Do prazer da criança de ser vista, ouvida e respeitada Estava esfuziante no pátio, mais falante do que de costume e a substituta nos observando. Contava às minhas amigas que sabia cozinhar. Elas riam e me achavam gabola. Foi aí que minha segunda professora entrou na conversa e perguntou: “– E como se faz feijão?” Começo a narrar com orgulho cada etapa aprendida entre a cozinha e o quarador da mãe: – Tem de catar o feijão, separar as pedrinhas, depois põe de molho. Pede pra mãe pôr na panela de pressão, é muito pesada e na hora de abrir também chama a mãe, porque pode explodir (e fazia aquela cara severa e grave de quando falamos coisas sérias). Sobe na cadeira, pega a tábua de carne e pica o alho, frita em outra panela, não pode deixar cair água, porque voa óleo e queima, é dolorido. Desliga a panela do alho frito, deixa esfriar um pouco e joga o feijão, assim não espirra. Liga de novo o fogão e deixa ferver para o tempero saborear os grãos. Eu também sei fazer arroz e macarrão, professora! E pela primeira vez eu vi uma professora sorrir cúmplice, legitimar meu saber aprendido às duras penas entre puxões de orelhas e mãe irritada com filho pequeno chorando e fraldas de algodão quarando ao sol. Por isso senti uma pena imensa quando, antes do primeiro ano escolar terminar, tenha sido obrigada a deixar minha cúmplice de Guararema e arriscar novas investidas nas relações professora-aluna em Mogi das Cruzes. E, para piorar, no mesmo novembro da mudança de casa, escola e cidade, o corpo todo pipocou com a catapora. Só com muita insistência da mãe me deixaram fazer as provas finais. Enquanto de pijama aguardava isolada em uma sala a mãe convencer a nova diretora descrente, que insistia que de nada adiantaria, pois eu não iria passar, a mãe, que sempre acreditou, disse: “– Dê as provas, ela tem o direito de fazer”. Errei duas palavras: advogado e admirável. Média final: 95. Virei uma espécie de celebridade na nova escola e na segunda série a professora me pôs num concurso com meninos da quarta série. Tratava-se de responder questões sobre a vida do patrono que dava nome a instituição: Adelino Borges Vieira. Sabia tudo sobre o professor, escritor e numa pergunta que envolvia cálculo com datas, fui mais rápida na soma que o meu concorrente. Na terceira série abandono amigos, professora e a escola que me tratava como prodígio e lá vou eu de novo descobrir outras searas do universo escolar em Juquiá. Várias outras professoras maluquinhas como aquela que descobriu o gosto do feijão que eu sabia preparar, a que apostou na menina espevitada que gostava de estudar e não tinha medo de disputar com meninos mais velhos um jogo de perguntas sobre o patrono escolar passaram por minha vida e me permitiram contar segredos e não me quiseram sentada feito robô na carteira. Mas delas, igualmente, não me lembro nem dos nomes, nem dos rostos, até que encontrei dona Rosa. Rosa foi a primeira professora cujo sorriso espetacular (e igualmente raro), a textura da pele negra feito ébano e suas lindas blusas de seda em tons de rosa permanecem vivos em minha memória. Rosa sem o saber me apresentou mestre Romão e Gaetaninho que me fizeram chorar copiosa e prazerosamente ao pé de um chapéu-de-sol. Foi amor à primeira leitura. Dona Rosa me fez descobrir a literatura ao me apresentar os Machados — o Assis e o Alcântara — que, por sua vez, fizeram-me entender que texto tem mais que informações, podem abrir a janela d’alma. Dona Rosa também tinha mania de concursos. Hoje, na estante, além das inúmeras medalhas que recebi naqueles anos em sua companhia, repousam, meio empoeirados, dois Jabutis, recebidos em 2005 e 2008, exatamente 30 anos depois que a vi pela primeira vez e 30 anos após nos separamos. As cascas dos pequenos troféus de metal com as letras do alfabeto sempre me fazem lembrar de Rosa, ela é parte significativa desta longa trajetória.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Aprender a ler e escrever altera a forma de funcionamento do cérebro

Lígia Formenti e Alexandre Gonçalves - O Estado de S.Paulo

As mudanças provocadas pelo aprendizado da leitura não se limitam à melhora na qualidade de vida. Estudo conduzido pelo Centro Internacional de Neurociências da Rede Sarah, com a colaboração de cientistas de Portugal, França e Bélgica, demonstra que aprender a ler e escrever altera a forma de funcionamento do cérebro.

Adaptação. De acordo com neurocientistas, hábito da leitura cria novas conexões cerebrais

"Há uma mudança nas redes neuronais da visão e da linguagem", afirma Lúcia Braga, presidente da Rede Sarah e coordenadora do trabalho. Os resultados indicam que o cérebro faz um rearranjo de suas funções ao iniciar o aprendizado da leitura.

Uma área inicialmente dedicada ao reconhecimento facial se torna "especialista" no reconhecimento de palavras. Isso, no entanto, não significa que alfabetizados percam a capacidade de identificar rostos. Muito embora, nos testes, os analfabetos apresentaram um desempenho superior aos alfabetizados no reconhecimento de faces.

"Outras pesquisas precisam ser realizadas. Mas a nossa suspeita é de que, em pessoas alfabetizadas, o reconhecimento de rostos em parte seja transferido para outra região cerebral", disse Lúcia Braga.

Estímulos. A pesquisa analisou exames de ressonância magnética feitos em 63 voluntários. O grupo, formado por brasileiros e portugueses, teve a atividade cerebral mapeada enquanto era submetido a estímulos, como ouvir frases, ver palavras, rostos e outras imagens. Dos voluntários, 10 eram analfabetos, 22 haviam sido alfabetizados na idade adulta e outros 31 aprenderam a ler e escrever ainda na infância.

Os exames mostraram que o grupo de pessoas alfabetizadas apresentou uma atividade mais acentuada nas áreas do córtex associadas à visão.

Além disso, pesquisadores notaram que houve também um aumento das respostas do cérebro relacionadas à identificação de fonemas. "Isso de certa forma explica por que analfabetos não conseguem fazer a supressão do som de uma palavra: como anana de banana", contou Lúcia.

As mudanças nas redes neurais foram identificadas nas pessoas escolarizadas desde a infância e naquelas que aprenderam a ler na fase adulta.

"Os ganhos foram evidenciados nos dois grupos", explicou a coordenadora da pesquisa.

Essa "adaptação" do cérebro é explicada por Lúcia. "A escrita é algo relativamente novo na história da humanidade para ter influenciado uma mudança genética", disse. A saída encontrada pelo cérebro foi reciclar áreas anteriormente reservadas a outras funções para atender às novas demandas. "Quanto mais estudamos, mais conexões cerebrais nós temos", completa.

Para Lúcia, os resultados do trabalho reforçam a importância da leitura, uma espécie de "musculação", para o cérebro. "Vemos isso diariamente no trabalho de reabilitação feito no Sarah. Os resultados do trabalho são muito mais rápidos em pessoas que têm cérebro exercitado do que as que não têm."

A Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação é especializada em tratamento e pesquisa sobre paralisia cerebral, espinha bífida, traumatismo craniano, acidente vascular cerebral, doenças neuromusculares e problemas ortopédicos.

Ao todo, nove unidades integram a rede - um hospital e um Centro Internacional de Neurociências e Reabilitação, em Brasília, e unidades hospitalares em mais sete capitais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Revisão da progressão continuada não significa avanço

Por Bruno de Pierro

Tema explorado durante as últimas campanhas eleitorais para o governo de São Paulo, a progressão continuada foi retomada tão logo a gestão de Geraldo Alckmin deu início. Na primeira declaração como secretário da Educação, Herman Voorwald avisou que o modelo de educação sofrerá revisão. De dois ciclos, a medida elevará para três o número de momentos que poderão reter alunos do ensino fundamental e médio das escolas públicas do Estado. Com isso, as repetências poderão acontecer a cada três anos, já considerando o nono ano.

Introduzido na rede estadual em 1998, na gestão Mario Covas, o modelo foi um dos elementos responsáveis pelo aumento das taxas de aprovação no ensino fundamental, que passaram de 83,8% em 1996, para 92% em 2002, segundo informações da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Só nas séries iniciais (1ª a 4ª série), onde se dá a alfabetização, o desempenho escolar mostra que a taxa de aprovação subiu de 95,7% em 2007 para 97,17% em 2009, paralela à queda na taxa de reprovação, que passou de 3,7% (2007) para 2,5% (2009).

A progressão continuada consiste num modelo que visa a assegurar a permanência do aluno na escola, sendo que, para isso, haja um sistema qualificado de avaliação contínua, capaz de identificar os problemas específicos e resolvê-los durante o processo de aprendizagem em ciclos. Porém, de acordo com especialistas ouvidos pelo Brasilianas.org, o modelo ainda não conseguiu ser plenamente instalado no Brasil.

Mesmo que os índices demonstrem avanços significativos na permanência de alunos na escola, questiona-se se as novas medidas trarão benefícios efetivos ao modelo, que ainda carece de métodos de avaliação continuada mais eficazes e de organização do trabalho escolar.

A pesquisadora Isabel Sach, do Instituto Paulo Freire, acredita que a introdução de mais uma série ao ciclo deve vir acompanhada de uma reformulação curricular e de uma reestruturação do modelo baseado em séries. “A mudança não vai trazer nenhum outro benefício ou impacto na construção de conhecimento”, avalia.

A necessidade de transformação mais profunda é defendida também pela professora do departamento de Educação da USP, Sandra Zakia. “Em São Paulo, a idéia de organização do ensino trazia implícita a noção de ruptura com a idéia de seriação. Mas em realidade, isso não ocorreu”.

De acordo com Zakia, a tendência é não se alterar a organização do trabalho da escola, mantendo-se o ano letivo e a organização de classes de uma forma de turmas rígidas, além de não se programar atividades diversificadas, de acordo com perfis diferentes de alunos. Neste aspecto, a progressão continuada tal como foi instaurada no Estado de São Paulo, e em outros estados, como Minas Gerais, não leva em consideração diversos elementos necessários para que o sistema funcione conforme foi colocado em proposta no final da gestão de Paulo Freire, na secretaria de Educação do município de São Paulo, durante o governo de Luiza Erundina (1989-1993).

“A proposta veio considerar fundamentos teóricos da psicologia e da epistemologia, quer dizer, a partir da contribuição de grandes psicólogos, que começaram a explicar como é que a criança aprende. Pensou-se, então, numa outra forma de organização, que é essa da proposta de três ciclos, que é a que mais se aproxima de uma organização que visa o desenvolvimento humano”, explica Sach.

Hoje, apesar das deficiências, a progressão está indiretamente presente no Plano Nacional de Educação, sendo recomendada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Segundo o ex-secretário de Educação de Pernambuco e atual presidente-executivo do Todos Pela Educação, Mozart Neves Ramos, os ciclos de alfabetização são fundamentais, mas ainda é necessário aprimorar o monitoramento contínuo de cada aluno.

Membro do CNE, Ramos acredita que, após a homologação do Plano, feita pelo Ministério da Educação, a tendência seja de que todas as redes municipais passem a adotar os ciclos, mas ressalta que caberá ao MEC promover o monitoramento e a implementação da política macro.

Comprometimento com a aprendizagem

Observa-se, portanto, que para o campo teórico da pedagogia a progressão continuada é uma via que se sustenta, mas ao ser encarada como política pública, ainda há muito o que se concertar. Sach considera que a formação dos professores está proporcionalmente relacionada ao sucesso do modelo de ciclos. Segundo a pesquisadora, o professor deve estar comprometido com a aprendizagem, e não com a “ensinagem”.

“Se o aluno não aprendeu de um jeito, deve-se questionar o que se pode fazer para que ele aprenda de outra maneira”, afirma Sach. Nessa perspectiva, o compromisso político faz acreditar que o aluno é capaz de aprender, afinal “trata-se da nossa condição de inacabados, porque a todo o momento estamos aprendendo”, completa.

Paralelo à atuação dos professores, os métodos de avaliação também são fatores vitais para a condução da progressão continuada. Nesse sistema, mais do que as avaliações externas – tais como o Ideb, a Prova Brasil, ou as estaduais, como o Saresp -, são os diagnósticos feitos em sala de aula que exercem maior influência no êxito.

Para Zakia, da USP, as provas externas, que deveriam servir mais como termômetro para gerenciar políticas públicas, acabam pautando o trabalho escolar. “Consolida-se a noção de que depois de determinado período, os alunos devem dominar certos conteúdos e desenvolvido determinadas competências”, aponta a professora.

Ramos alerta que, ao menos durante a fase de alfabetização (os três primeiros anos do ensino fundamental), cada criança deve ser acompanhada individualmente. Enquanto esteve à frente da educação em Pernambuco, de 2003 a 2006, Ramos priorizou a supervisão escolar, responsável por identificar a dificuldade de um aluno em se desenvolver. “A coordenação pedagógica tem como função exatamente acompanhar o processo de ensino-aprendizagem dentro do ciclo escolar”, explica.

Conforme contextualiza Sach, durante anos a avaliação foi a arma que o professor tinha para conter a indisciplina e controlar o aluno, ameaçando-o tirar-lhe pontos da média. E, quando os resultados mostravam deficiências, a solução era a repetência.

Para exemplificar, a pesquisadora do Instituto Paulo Freire compara o diagnóstico escolar com o hospitalar. “No caso de um médico, ele irá dizer qual é o problema e receitar um remédio. Se não melhorar, o médico entrará com outro medicamento. Na escola, não. Você reprova o aluno, e, no ano seguinte, ele terá novamente a mesma matéria, o mesmo livro e, se tiver muito azar, o mesmo professor. É literalmente repetir algo que não deu certo antes”, explica.

Contudo, o processo continuado, se não reprova, deve saber como levar ao aluno o conhecimento novo e quais as possibilidades de recursos para fazê-lo ser adquirido. “Se um aluno não conseguiu aprender a área de um quadrado desenhando, pode-se tentar fazer, com ele, uma pipa; e, se isso também não funcionar, tenta-se um recurso tecnológico, tridimensional”, sugere Sach.

A determinação de que a progressão continuada seja revisada, no Estado de São Paulo, não garante, ainda, que o modelo alterado desencadeará significativos avanços do ponto de vista estrutural no campo pedagógico. Mas também não trará desvantagens. Para a professora Zakia, é necessário se pensar menos a partir de padrões tão homogêneos e mais a partir de padrões de diversificação do trabalho.

Isto é, repensar não só a aprovação em si, mas também tudo o que completa esse sistema: o ambiente escolar, o espaço físico das salas de aula, o acompanhamento de cada aluno e até o modelo baseado em anos letivos. “A dificuldade consiste na tarefa de reinventar a escola, o espaço e o tempo escolar”, conclui Zakia.
CONHEÇA AS METAS QUE COMPÕEM O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO 2011-2020
Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil
Brasília - O projeto de lei que institui o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que deverá vigorar nos próximos dez anos, foi entregue hoje (14) pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O documento estabelece 20 metas a serem alcançadas pelo país até 2020. O texto também detalha as estratégias necessárias para alcançar os objetivos delimitados.
Conheça as metas que compõem o Plano Nacional de Educação 2011-2020:
Meta 1: Universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de 4 e 5 anos, e ampliar, até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até 3 anos.
Meta 2: Criar mecanismos para o acompanhamento individual de cada estudante do ensino fundamental.
Meta 3: Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%, nesta faixa etária.
Meta 4: Universalizar, para a população de 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.
Meta 5: Alfabetizar todas as crianças até, no máximo, os 8 anos de idade.
Meta 6: Oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica.
Meta 7: Atingir as médias nacionais para o Ideb já previstas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)
Meta 8: Elevar a escolaridade média da população de 18 a 24 anos de modo a alcançar mínimo de 12 anos de estudo para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres, bem como igualar a escolaridade média entre negros e não negros, com vistas à redução da desigualdade educacional.
Meta 9: Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional.
Meta 10: Oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de educação de jovens e adultos na forma integrada à educação profissional nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio.
Meta 11: Duplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta.
Meta 12: Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta.
Meta 13: Elevar a qualidade da educação superior pela ampliação da atuação de mestres e doutores nas instituições de educação superior para 75%, no mínimo, do corpo docente em efetivo exercício, sendo, do total, 35% doutores. Sete estratégias.
Meta 14: Elevar gradualmente o número de matrículas na pós-graduação stricto sensu de modo a atingir a titulação anual de 60 mil mestres e 25 mil doutores. Nove estratégias.
Meta 15: Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, que todos os professores da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.
Meta 16: Formar 50% dos professores da educação básica em nível de pós-graduação lato e stricto sensu, garantir a todos formação continuada em sua área de atuação.
Meta 17: Valorizar o magistério público da educação básica a fim de aproximar o rendimento médio do profissional do magistério com mais de onze anos de escolaridade do rendimento médio dos demais profissionais com escolaridade equivalente.
Meta 18: Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos de carreira para os profissionais do magistério em todos os sistemas de ensino.
Meta 19: Garantir, mediante lei específica aprovada no âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a nomeação comissionada de diretores de escola vinculada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à participação da comunidade escolar.
Meta 20: Ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
A ESCOLA DA PONTE

de Rubens Alves


Vou contar um caso de amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela escola da ponte. Bastou vê-la para que um passado reverberasse dentro de mim não tenho memórias dolorosas do grupo escolar. As coisas a serem aprendidas eram fáceis e eu as aprendia sem esforço. Mas minha efervescência intelectual - pois as crianças também têm efervescências intelectuais - estava em outro lugar: no mundo que começava quando eu saía da escola.
Eu me levantava às 5h e me punha a andar pela casa fazendo barulho. Queria que os adultos dorminhocos despertassem do seu sono para o mundo maravilhoso que aparecia com a luz do dia. Minha curiosidade me levou a desmontar o relógio de pulso de minha mãe, o único que ela tinha. Queria saber como ele funcionava, aquela engrenagem fascinante. Infelizmente, não consegui montá-lo de novo.
No grupo escolar, nos ensinavam o que o programa mandava: o nome de serras, serra da Mata da Corda, do Espinhaço, da Bocaina; o nome de afluentes de rios distantes, dos quais a única coisa que aprendíamos eram... os nomes. O que me foi útil no exame de admissão, porque me perguntaram o nome da segunda maior ilha fluvial do mundo. Tupinambarana. Eu sabia o nome. Mas ainda hoje, nada sei sobre a ilha.
Era tempo da segunda guerra mundial. As batalhas entravam em nossa casa pelo rádio. "E Stalingrado continua a resistir." "Aviões aliados martelaram as posições nazistas no Vale do pó." meu pai afixou um mapa da Europa na parede e nele íamos seguindo os movimentos das tropas. A imaginação corria rapidamente e eu me sentia como um soldado na frente de batalha. O mapa, os países, o nome das cidades, dos rios, das montanhas - tudo estava vivo para mim.
Conto essas coisas da minha vida de menino para dizer que as crianças são curiosas naturalmente e têm o desejo de aprender. O seu interesse natural desaparece quando, nas escolas, a sua curiosidade é sufocada pelos programas impostos pela burocracia governamental. Pela minha vida tenho estado à procura da escola que daria asas à curiosidade do menino que fui. Pois, de repente, sem que eu esperasse, eu me encontrei com a escola dos meus sonhos. E me apaixonei.

Novas Formas de ver


Tudo começou em 2000, via internet. Um desconhecido de Portugal, Ademar Ferreira dos santos. Uma brasileira lhe havia dado um livrinho meu, Estórias de Quem Gosta de Ensinar. Ele gostou. Sem nos conhecermos pessoalmente, nos descobrimos amigos. Ele me convidou para ir a Portugal e falar aos professores da universidade de Braga e adolescentes de uma escola secundária.
Fui e fiz. Foi bom. Aí, numa manha, ele me disse: "vou levar-te a conhecer uma escola diferente.""Diferente como?", perguntei. "Não é possível dizer-te. tu verás." chegamos à escola. Na sua frente havia um pátio arborizado. Lá estava o diretor, professor José Pacheco. Mais tarde, aprendi que ele se recusa a ser chamado de diretor, por razões que explicarei mais tarde.
Minha expectativa era que o diretor, por um mínimo dever de cortesia, haveria de levar-me a conhecer a escola. Homem de poucas palavras, trocamos meia dúzia de banalidades. Vinha passando à nossa frente uma menina de uns 9 anos. Ele a chamou e disse: "Tu podes mostrar e explicar a nossa escola ao nosso visitante?" "Pois, pois", respondeu a menina, sem mostrar nenhuma surpresa. Ato contínuo, ele me abandonou e fiquei eu à mercê da menina.

Os primeiros sustos


Eu nunca tinha tido experiência que um diretor entregasse a uma aluna, menina de 9 anos, a tarefa de mostrar e explicar a sua escola a um educador estrangeiro.
A menina não se fez de rogada. Encaminhou-se resolutamente na direção da porta da escola e eu, obedientemente, a segui. Chegando à porta, ela parou, voltou-se para mim e disse em voz resoluta e confiante: "para entender a nossa escola, o senhor terá de se esquecer de tudo o que o senhor sabe sobre escolas. Não temos turmas, não temos alunos separados por classes, nossos professores não dão aulas com giz e lousa, não temos campainhas separando o tempo, não temos provas e notas."
Foi o segundo susto. As palavras da menina produziram um vazio na minha cabeça. Porque as escolas que conheço, mesmo as mais experimentais e avançadas, têm professores dando aulas, têm turmas, têm salas de aula que separam as crianças, têm provas e testes, têm notas e boletins para o controle dos pais.

Professores aprendizes


Perguntei: "E como é que vocês aprendem ?” “Ela me respondeu: “Formamos um pequeno grupo de seis pessoas em torno de um tema de interesse comum. Convidamos um professor para ser nosso assessor. Ele nos ajuda com informações bibliográficas e de internet. Estabelecemos, de comum acordo, um programa de trabalho de duas semanas. Durante esse tempo, lemos e pesquisamos. Ao cabo de duas semanas, nos reunimos para avaliar o que aprendemos e o que deixamos de aprender.”
"Percebi logo que naquela escola não podia haver livros-texto. Livros-texto são onde se encontram os saberes que, por escolha e determinação de uma instância burocrática superior, devem ser aprendidos pelos alunos. O conjunto desses saberes se denomina "programa". Mas acontece que a curiosidade não segue os caminhos determinados pela burocracia.
Sem livros-texto, as crianças têm de aprender a procurar os saberes necessários à compreensão do "tema de interesse comum". E os professores deixam de ser aqueles que sabem os saberes prescritos pelos programas. Eles se encontram permanentemente em suspenso ante o inesperado dos interesses das crianças. Os professores não são aqueles que sabem os saberes. São aqueles que sabem encontrar caminhos para os saberes. de qualquer forma, os saberes já se encontram em livros, bibliotecas, enciclopédias, internet. Acresce-se a isso o fato de que, hoje, os saberes se tornam rapidamente obsoletos.
Se os alunos tiverem os mapas e souberem encontrar o caminho, eles terão sempre condições de descobrir o que sua curiosidade pede. E os professores, por não saberem de antemão o que as crianças querem saber, têm de se tornar aprendizes junto às crianças. O tal "programa de trabalho de duas semanas", de que falou a menina, era para os professores também. Eles ensinam o aprender aprendendo junto. O que é muito mais divertido do que ficar, todos os anos, repetindo os mesmos saberes imobilizados pelos programas. Ficar a repetir o que se sabe, ano após ano, é, sem dúvida, uma prática emburrecedora.

Dentro da escola


Andamos um pouco e a menina abriu a porta da escola. Era uma grande sala, com muitas mesinhas, crianças pequenas, crianças grandes, algumas com síndrome de Down, todas juntas no mesmo espaço. Cada uma fazendo a sua coisa. Estantes com livros. Vários computadores. Algumas crianças lendo ou escrevendo. Outras consultando livros e a internet. Algumas professoras assentadas às mesinhas junto das crianças. Ninguém falava alto. Só sussurros. E ouvia-se, baixinho, música clássica.
Numa parede, em letras grandes, estavam várias frases relativas ao descobrimento do Brasil. Era o ano em que se comemoravam os cinco séculos da descoberta. "Que são essas frases?", perguntei. "Os miúdos [crianças] estão a aprender a ler. aqui não aprendemos nem letras, nem sílabas. Só aprendemos totalidades. Mas temos de aprender a ordem alfabética para consultar o dicionário." Outro susto: aprender a consultar o dicionário tão cedo?

Mistérios do dicionário


Ao nosso lado havia uma delas consultava um dicionário. Ajoelhei-me ao seu lado, para que nossos olhos estivessem no mesmo nível, e perguntei: "Tu estás a consultar o dicionário?" "Sim", ela me respondeu. "Procuras uma palavra que não conheces?" "Não, conheço a palavra." Eu não entendi e perguntei de novo: "Mas se conheces a palavra por que a procuras no dicionário?" Aí ela me deu uma resposta que me produziu outro susto. "É que estou a produzir um texto para os miúdos e usei uma palavra que, creio, eles não conhecem. Estou, assim, a preparar um pequeno dicionário que colocarei ao pé da página do meu texto para que entendam o que escrevi, posto que ainda não podem consultar o dicionário por não haverem ainda aprendido a ordem alfabética."
Fiquei assombrado. Aquela menina tinha clara consciência dos limites dos conhecimentos dos "miúdos". ela escrevia pensando neles. Naquela idade, já era uma educadora.

Os quadros de ajuda


Para que aquela menina estivesse escrevendo um texto para as crianças era preciso que não houvesse paredes separando-a dos "miúdos", que eles ocupassem o mesmo espaço e existisse entre eles relações de comunicação, confiança e responsabilidade. O texto que ela escrevia não fora um "dever" que a professora lhe passara. Ela o escrevia a pedido dos alunos mais novos.
Essa rede livre de comunicação, responsabilidade e ajuda estava silenciosamente exibida em dois quadros afixados na parede. Num deles estava escrito preciso que me ajudem em, no outro, posso ajudar em. Qualquer aluno que esteja com um problema, antes de procurar a professora, escreve o seu pedido no primeiro quadro: "Preciso que me ajudem em regra de três", e assina o nome, Fátima, por exemplo. Aí, o Sérgio, passando pelo quadro, vê a mensagem da Fátima e pensa: "A Fátima não sabe regra de três. Eu sei. Vou ajudá-la." E isso acontece naturalmente, é parte do cotidiano da escola. Não é preciso pedir licença à professora e nem há hora certa para se fazer isso.
O segundo quadro é o contrário: quando um aluno se sente competente em um saber, ele o anuncia aos colegas e se coloca à disposição. A capacidade de ensinar um saber a alguém vale por uma avaliação. E é o aluno quem a faz. É ele que se sente competente. Assim vão eles praticando as virtudes de ensinar, de aprender e de se ajudarem uns aos outros.

O grande tribunal


Eu me encontrava num estado de acontecendo? Ninguém falando alto, nenhuma professora pedindo silêncio, todos trabalhando, a música clássica. Aquilo não podia ser toda a verdade. Deveria haver algo mais. Perguntei à menina: "Mas vocês não têm alunos agressivos, indisciplinados, que gritam e perturbam a ordem?" "Temos. Mas para isso temos o tribunal de alunos. Quando um menino ou uma menina se comporta de maneira a perturbar a ordem nos termos que nós mesmos estabelecemos, o tribunal entra em ação e providências disciplinares são tomadas."
"Que coisa maravilhosa", eu pensei. Uma escola onde os professores não são responsáveis pela disciplina. E nem o diretor é a instância punitiva última, para onde são enviados os desordeiros. É a comunidade das crianças que cuida disso. Professores e diretor podem, assim, se dedicar aos desafios prazerosos de aprender junto com os alunos.

O último julgamento


Voltei à Escola da Ponte em 2001. Perguntei sobre o tribunal. O professor José Pacheco contou-me que o tribunal não existia mais. Fora abolido pela assembléia. Percebeu-se que ele era uma instância de punição e não de recuperação. E passou a relatar-me o incidente que produzira a sua dissolução.
Um aluno violento fora levado ao tribunal para responder por uma agressão. A assembléia da escola nomeou, como de praxe, um advogado de acusação. O réu escolheu um colega para defendê-lo. A assembléia se reuniu para o julgamento.
"A acusação foi devastadora", disse-me o professor José Pacheco. "Reuniu as provas e estabeleceu de forma cabal a culpa do réu. Eu pensei: ele está perdido, não há saída. entrou em ação o advogado de defesa. Ele não negou o que fora apresentado pela acusação, nem apresentou fatos que minimizassem a culpa do réu, mas lembrou aos membros do tribunal que todos eles eram Cristãos, freqüentavam a missa e o catecismo. E que, na igreja, se ensinava que o amor nos leva a ajudar aqueles que estão em dificuldades. Concluiu: `Pois esse colega tem estado em dificuldades há muito tempo e todos sabíamos disso. E agora estamos prontos a puni-lo. antes que o tribunal dê a sentença, e em nome da nossa coerência, quero que respondamos o que fizemos para ajudá-lo.'"
Esse foi o fim do tribunal. No seu lugar estabeleceu-se uma comissão de ajuda. Hoje, na escola da ponte, quando algum aluno começa a apresentar problemas de comportamento, essa comissão se adianta e nomeia colegas para ajudá-lo, com a missão de estar sempre por perto do dito aluno. E, quando se percebe que ele vai fazer algo inadequado, os colegas entram em ação para tentar dissuadi-lo.

O direito à alegria


A menina continuou a me guiar. Chegamos a uma mesa onde estava trabalhando uma aluna com síndrome de Down. Vi garota e pensei sobre sua convivência mansa com os seus colegas. Senti que sua presença ali era algo normal e feliz na rede de relação de solidariedade e de aprendizado que constitui a escola. Aquela menina era parte dessa rede. Com algumas peculiaridades e limitações, é claro. Mas, como todos os outros, ela se dedicava a aprender.
Se me perguntarem se ela conseguia seguir o programa, eu responderia dizendo que não há um programa a ser seguido numa ordem certa e num mesmo ritmo. Cada criança é única, com seus próprios sonhos, ritmos e interesses. A escola não pode destruir essa criança para amoldá-la a uma "forma".
O objetivo da escola é criar um espaço em que cada criança possa pensar os seus sonhos e realizar aquilo que lhe é possível, no ritmo que lhe é possível. Pensei que, nas escolas da minha memória, é comum que a preocupação dominante dos professores seja dar o programa. É isso que a administração pede deles. Não é incomum que professores, em conversas, falem em que lugar da "corrida" dos programas eles se encontram. É compreensível. Como partes da máquina burocrática, eles perderam a liberdade e se esqueceram dos sonhos antigos.
A educação não tem como objetivo preparar os alunos para ingressar no mercado de trabalho. O objetivo é criar as condições possíveis para a experiência da alegria. Porque é para isso que vivemos. A escola deve ser um espaço em que isso acontece. Parte das potencialidades daquela menininha tem a ver com saber viver no mundo dos ditos "normais". E parte das potencialidades das crianças ditas "normais" tem a ver com saber conviver com crianças diferentes - e ajudá-las. Isso também é alegria. Esse aprendizado de solidariedade é mais importante do que qualquer conteúdo de programa.

Cada aluno é único


Pensei: o que são programas? Programas são uma organização lógica de saberes dispostos numa ordem linear e que devem ser aprendidos numa velocidade igual, como se todos estivessem numa linha de montagem de uma fábrica.
Sobre que pressupostos se constroem os programas? Bem, o primeiro costuma ser mais ou menos assim: "A aprendizagem se dá numa relação entre o saber, abstratamente definido, e a inteligência da criança. A mediação entre saberes e inteligência se dá pela didática. Se a aprendizagem não acontece, o problema se encontra ou na inteligência deficiente da criança ou numa didática inadequada."
Um segundo pressuposto prega que "todas as crianças são iguais". É só isso o que justifica que os mesmos saberes sejam dados a todas as crianças. mas isso é patentemente falso. os sonhos das crianças das praias de alagoas, das montanhas de minas gerais, da Amazônia, das favelas, dos condomínios ricos não são os mesmos. então, qual é o sentido instrumental dos saberes abstratos igualmente prescritos a todas as crianças pelos programas? Não admira que sejam logo esquecidos. Só realmente aprendemos aquilo que usamos.
"Todas as crianças têm o mesmo ritmo. Por isso as crianças têm de aprender no ritmo em que as aulas são dadas." Ah, o ritmo das aulas. Toca a campainha, é hora de pensar português. Toca a campainha, é hora de parar de pensar português e começar a pensar matemática. Toca a campainha, é hora de parar de pensar matemática e começar a pensar geografia. E assim por diante. O ritmo e a fragmentação das aulas estão em completo desacordo com tudo o que sabemos sobre o processo de pensamento. Não é possível dar ordens ao pensamento para que ele pare de pensar numa coisa numa certa hora e comece a pensar em outra.
Mas há ainda um quarto pressuposto: "A avaliação da aprendizagem se faz por meio de provas e testes e os seus resultados são expressos em números." Confesso ainda não ter compreendido a função pedagógica desse procedimento. Sobre isso há muito a ser escrito.

Grandes horizontes


Na Escola da Ponte não há programas. Isso não quer dizer que a aprendizagem aconteça ao sabor dos desejos das crianças. Imagine um homem do campo, que só conheça as comidas mais simples: polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne. Imagine que ele venha à cidade e seja levado por um amigo a um restaurante. "Que é que o senhor deseja?", lhe perguntaria o garçom. Ele certamente responderia falando de polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne, pois esse é o seu repertório de pratos. Aí, o amigo lhe diria: "Quero sugerir que você experimente uns pratos diferentes."
Assim acontece na relação entre professores e alunos. Os professores sabem mais. É por isso que são professores. E uma de suas tarefas é "seduzir" as crianças para coisas que elas ainda não experimentaram. Eles lhes apontam coisas que nunca viram e as introduzem num mundo desconhecido de arte, literatura, música, natureza, lugares, história, costumes, ciências, matemática. "A primeira tarefa da educação é ensinar a ver", dizia o filósofo Nietzsche. Não é obrigatório que elas gostem do que vêem. Mas é importante que seus horizontes se alarguem.

O direito de não ler


O dia na Escola da Ponte se inicia de uma forma inusitada. Cada criança se assenta onde quer e escreve numa folha de caderno o seu plano de trabalho para aquele dia. Esse plano de trabalho está ligado ao seu projeto de investigação. Ao final do dia, comparando o realizado com o planejado, ela poderá avaliar o quanto caminhou. Eu imagino que deveria ser mais ou menos assim que o trabalho acontecia nas oficinas artesanais e de arte do renascimento: os aprendizes trabalhavam num projeto artesanal, ou de escultura, pintura, e, vez por outra, o mestre aparecia para avaliar, corrigir, sugerir.
Andando na Escola da Ponte, encontro um cartaz cujo título era: Direitos e Deveres das crianças em relação aos livros. O primeiro direito me deu um susto tão grande que nem li os outros. Foi susto por ser inesperado. Mas foi um susto bom. Até ri. Dizia assim: "Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta." Esse direito sempre me pareceu óbvio. Mas eu nunca o havia visto assim escrito de forma clara, numa escola, para que os alunos o lessem. As escolas da minha memória jamais fariam isso. Porque é parte do seu dever burocrático fazer com que as crianças leiam os livros de que não gostam.
Há professores que ensinam literatura para desenvolver uma postura crítica nos seus alunos. Mas esse não é o objetivo da literatura. Lê-se pelo prazer de ler. Por isso, refugo quando pessoas falam sobre a importância de desenvolver o hábito de leitura. Isso é o mesmo que dizer que é preciso desenvolver nos maridos o hábito de beijar a mulher. Hábitos são comportamentos automatizados que nada têm a ver com prazer. Lê-se pela mesma razão que se dá um beijo amoroso: porque é deleitoso, porque dá prazer ao corpo e alegria à alma.

As duas caixas


 Já resumi minha teoria de educação dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma delas é a "caixa de ferramentas", onde se encontram todos os saberes instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses saberes nos dão os "meios para viver". Mas há também uma "caixa de brinquedos". Brinquedos não são ferramentas. Não servem para nada. Brincamos porque o brincar nos dá prazer. É nessa caixa que se encontram a poesia, a literatura, a pintura, os jogos amorosos, a contemplação da natureza. Esses saberes, que para nada servem, nos dão "razões para viver".
A "caixa de ferramentas" guarda muitos livros: manuais, listas telefônicas, livros de ciências. Na "caixa de brinquedos" estão os livros de literatura e poesia que devem ser lidos pelo prazer que nos dão. Obrigar uma criança ou um adolescente a ler um livro de que não gosta só tem um resultado: desenvolver o ódio pela leitura. É o que acontece com os jovens que, preparando-se para o vestibular, são obrigados a ler os "resumos". A receita certa para destruir o prazer da leitura é colocar um teste ao seu final para avaliar o aprendido. Ou pedir que se faça um fichamento do livro lido.

Leis e direitos


Numa parede da escola se encontravam as "leis". Mais importante que as leis era o fato de que elas tinham sido sugeridas e aprovadas pela assembléia de alunos. Aquele documento representava a vontade coletiva de crianças, professores e funcionários. Era o seu "pacto social" de convivência. Lembro-me de alguns itens. "Todas as pessoas têm o direito de dizer o que pensam sem medo." "Ninguém pode ser interrompido quando está falando." "Não se deve arrastar as cadeiras fazendo barulho."
O item que mais me comoveu e que é revelador da alma daquelas crianças foi esse: "Temos o direito de ouvir música enquanto trabalhamos, para pensar em silêncio." Entendi, então, a razão da música clássica que se ouvia baixinho.

Acho bem e acho mau


Ao final da minha caminhada inaugural pela Escola da Ponte, a menina me indicou um computador. "Nesse computador se encontram dois arquivos", ela explicou. "Um se chama acho bem, o outro, acho mal." Qualquer pessoa pode usar o computador para comunicar aos outros o que acha bem e o que acha mal. Um ninho de passarinho num galho de árvore, um ato do presidente da república, o aniversário de um colega, um livro divertido - tudo isso pode estar no acho bem. No acho mal, eu encontrei: "Acho mal que o Fernando fique a dar estalos na cara da Marcela." pensei logo: "Esse é candidato ao tribunal..."
As crianças haviam aprendido que há palavras grosseiras, chulas, que não devem ser usadas. No seu lugar usam-se outras palavras sinônimas. É o caso do verbo "cagar", que não deve ser usado em situação alguma. Mas pode-se usar o sinônimo "defecar" que, sem ser elegante, pelo menos não ofende. Pois uma menina escreveu: "Acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda cagada." Menina genial! Ela sabia que o dicionário estava errado. Cagar e defecar não são palavras sinônimas, muito embora o dicionário assim o declare. Se ela tivesse escrito "Acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda defecada", sua indignação teria perdido toda a força literária. Porque aquilo que os meninos faziam na tampa da privada não era defecar; era "cagar" mesmo, uma coisa chula e grosseira.

O todo e as partes


A menina já me havia informado do princípio central da pedagogia da Escola da Ponte, ao me explicar como os miúdos aprendiam a ler: "Aqui não aprendemos nem letras e nem sílabas. Só aprendemos totalidades." As disciplinas isoladas são o resultado da tendência de análise e especialização que caracterizam o desenvolvimento das ciências ocidentais. A nona sinfonia, de Beethoven, não é o conjunto de suas notas. Ela não se inicia
com notas e acordes. A totalidade vem primeiro e é só em relação a ela que as partes têm sentido. Assim é o corpo: uma entidade musical. Nenhuma de suas partes tem sentido em si mesma. É a melodia central do corpo que faz as partes dançarem. Mas os nossos jovens, diante do vestibular - e é preciso não esquecer que os programas das escolas se orientam no sentido de preparar para o vestibular -, trazem consigo as partes desmembradas de um corpo morto: uma soma enorme de informações que não formam um todo significativo. Física, química, biologia, história, geografia, literatura, como se relacionam? Fazem-se então esforços inúteis de interdisciplinaridade. Inúteis porque o todo não se constrói juntando-se as partes.

Brincar é coisa séria


A Escola da Ponte me mostrou um novo mundo em que crianças e adultos convivem como amigos na fascinante experiência de descoberta do mundo. Aprender é muito divertido. Cada objeto a ser aprendido é um brinquedo. Pensar é brincar com as coisas. Brincar é coisa séria. Assim, brincar é a coisa séria que é divertida.
Quando falo que me apaixonei pela Escola da Ponte, estou dizendo que amo aquelas crianças. Gosto delas. e elas também gostam de mim. Voltar à Escola da Ponte já está se tornando rotina. Quando lá chego, sou afogado por centenas de "beijinhos". Comove-me a amizade daquelas crianças. Sinto que o maior prêmio para um professor é quando os alunos se tornam amigos dele. Um verdadeiro professor nunca sofre de solidão.
Uma entrevistadora brasileira perguntou a uma menina: "Quem é Rubem Alves?" a menina respondeu: "É um velhinho que conta estórias." As crianças podem me chamar de velhinho. Não me importo. Mas somente elas.

*Rubem Alves é escritor, autor de dezenas de livros, entre eles A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir (Papirus, 120 págs., r$ 22), em que conta sua experiência na Escola da Ponte. Rubem Alves será um dos palestrantes do VII Congresso e Feira de Educação saber 2003, que acontece de 11 a 13 de setembro, no palácio das convenções do Anhembi, em São Paulo. Mais informações no site www.saber2003.com.br**os www.saber2003.com.br**os azulejos que ilustram esta matéria foram século XX (edições Inapa, 280 págs.) Leia a matéria na íntegra www.revistaeducacao.com.br/r_alves.php